domingo, 20 de maio de 2012

PRINCESA MONONOKE E O ESTUDO ANTROPOLÓGICO DAS RELIGIÕES

PRINCESA MONOKE




INTRODUÇÃO

O filme Princesa Mononoke foi escolhido pelo professor Felipe Jesuino para que fizéssemos um estudo acerca dos estágios da religião com base nas idéias de Comte, filósofo que viveu entre o final do século XVIII e a metade do século XIX e que construiu o pensamento positivista.
No filme o príncipe do vilarejo dos Emishi, é infectado por um deus possuído de um mal que lhe causará a morte caso não encontre a cura. Para encontrá-la, o príncipe decide fazer uma viagem que o levará a uma batalha entre os deuses, animais da floresta, liderados por uma garota chamada San, a Princesa Mononoke e por habitantes de uma vila de mineiros, que estão aos poucos acabando com a floresta.
O filme é uma fábula bem interessante, pois além de animar literalmente os personagens, nos leva a reflexão sobre cuidado, respeito, sistemas de crenças e sacralidade.
No nosso caso, faremos um estudo sobre crenças religiosas, sagrado, profano, e contemporaneidade dentro do enredo do filme fazendo um paralelo com as idéias de Comte.

CRENÇAS RELIGIOSAS

Durante toda a história da humanidade as crenças estiveram presentes, na verdade sempre foi a religiosidade que uniu povos e determinou a vida das comunidades. A religião sempre teve muito poder sobre a vida e a morte, inclusive com extremo determinismo. A vida sempre influenciada por um Deus que exigia obediência e devoção foi traçada por convicções profundas que são repassadas gerações após gerações.
Hoje apesar de muitas mudanças, de avanços nas muitas áreas do conhecimento, do avanço tecnológico, as crenças religiosas ainda norteiam a conduta e a vida de muitos povos. Histórias e lutas foram travadas a partir de crenças entorno de uma ideologia religiosa. Assim, percebemos que a conduta e o desenrolar da vida estão intimamente ligados às crenças do indivíduo e da família.
No filme Princesa Mononoke, percebemos que durante todo o desenrolar da história há um cenário de crenças, mitos, e marcadamente a sacralidade.
No inicio do filme quando o Príncipe Ashitaka sobe em um observatório da aldeia e pergunta ao Monge Jigo e se ele viu algo, ele responde “vi, não é humano”. Aqui há a crença em algo divino, algo sobre natural, espiritual. Há a crença em algo com força maior. Outro fato observado, é que a medida que o Tatari-gami (deus da maldição) se aproxima, a floresta vai morrendo, como se ele estive imbuído de uma força negativa muito forte. O deus-Javali segundo o filme é um dos protetores da floresta. Mas algo aconteceu que enfureceu e dominou o deus-Javali tornando-o um monstro um Tatari-gami. Nessa cena é evidente o animismo, a presença de divindades nos animais, na natureza, nos elementos da natureza.
Na cena em que o javali Nago é indagado pelo príncipe Ashitaka
- “Oh, Deus guardião da floresta cujo nome desconheço, diga o porquê de sua fúria!”  Aqui se vê o respeito pela divindade, não importando qual ela seja. Isso só é possível se houver crença em algo superior e uma boa percepção do sagrado.
Em outra cena, quando a anciã em um ritual, pergunta ao príncipe se ele está disposto a cumprir o seu destino. A crença em um destino, que todos temos uma missão, é uma visão mística da vida. E ainda, quando ele responde à anciã dizendo: “sim, eu decidi isso no momento em que deixei minha fecha voar” Aqui ele deixa clara a crença na lei de causa e efeito. Ele flechou uma entidade sagrada o Deus-Javali e isso não passaria impune. Na verdade ao entrar em contato com o deus enfurecido, ele se contaminou do mal.

DIMENSÃO SAGRADA E COMO ISSO É VALORIZADO

Entendemos que a dimensão sagrada é percebida nas atitudes cotidianas, no dia a dia, nas relações com a vida e com o próprio sagrado.
No filme, podemos citar várias cenas onde o respeito à sacralidade, a submissão a entidades divinas são bem evidentes.
Na cena na qual a anciã vai ao socorro do príncipe e se dirige ao mostro, o reverencia e diz: “Oh Deus enfurecido, desconhecido por nós, eu humildemente o saúdo! Nós ergueremos um altar, onde você caiu e o honraremos.” Mesmo o Deus-Javali sendo algo ruim, destruidor e que tendo machucado o príncipe, é evidente o respeito a algo maior e o respeito às regras vigentes no mundo da espiritualidade. E mais ainda, em respeito ao que o monstro representa, a entidade divina será honrada e respeitada.
Na mesma cena vemos que a anciã compreende a fúria do Deus-Javali, quando ela diz: “esqueça sua fúria e fique em paz.”
Mais tarde em outra cena quando o príncipe Ashitaka pede permissão aos seres elementais da floresta para passar por dentro dela. Ele diz: “Perdoe-nos, mas precisamos passar por sua floresta.” Percebe-se o respeito à natureza e aos seres que a protegem.  Depois do pedido feito, os seres elementais os seguem e os guiam. Aqui está evidenciado, uma possível convivência entre os humanos e a natureza, diante do respeito destinado a esta.

FORMAS DE CONDUTA ORGANIZADAS EM TORNO DAS CRENÇAS RELIGIOSAS
Partindo do conceito amplo de religião, como sendo a crença na existência de forças sobrenaturais ou em um ser ou mais de um ser sobre-humano, com o qual o homem tem relação, vimos na aldeia do Príncipe Ashitaka um conjunto de regras incorporadas naturalmente destinadas à sacralidade. A postura dos moradores da aldeia geração após geração, sempre respeitando a sabedoria dos mais velhos, a prática ritualística de buscar respostas lendo os sinais dados pelas pedras, as chamas acesas, a submissão aos mitos são condutas que foram transmitidas ao longo do tempo, com o objetivo de manter a tradição e o respeito aquilo que é sagrado.
E ainda na mesma cena quando Ashitaka corta seu cabelo e reverencia o sagrado, pois vai partir em viagem para o Oeste, a anciã diz: “as leis nos proíbem de vê-lo partir. Vá em paz.” Mais uma vez nessa aldeia, é possível perceber nitidamente condutas em respeito ao sagrado, ao divino: obediência, reverência, subordinação, respeito ao que foi determinado.
A princesa Mononoke, morando na floresta, pois fora criada por lobos, desenvolveu a comunhão com os moradores da floresta e uma aversão aos humanos, pois sua experiência mostrava que esses eram inconfiáveis, traidores, ambiciosos e destruidores da floresta. Aqui a princesa tem uma conduta essencialmente dentro do animismo, onde as forças da natureza exercem grande poder. Muitas vezes por não compreender como esses fenômenos acontecem, ganharam créditos de deuses, com todos os direitos de reverência e devoção e assim foi o caso da princesa Mononoke.
Quando o príncipe foi ferido a princesa levou-o a um lago e entregou-o aos cuidados da natureza. Deixou-o no lago para que o Deus Shishi-game decidisse a vida dele. Sua ferida cicatrizou ao toque do Deus, ou seja, sua vida foi poupada com disse a princesa Mononoke. A princesa acreditava na floresta e a defendia com fervor. Sua conduta era de total zelo e devoção aos que lhe acolheram e criaram. Ela não se sentia humana e sim loba, pois é filha da deusa lobo Moro.
Na cidade de Tatara-ba a situação era bem diferente. Eboshi, a líder era pragmática e cética. Não acreditava em deuses, em seres elementais. Desmatava a floresta em busca de riquezas, de recursos materiais, em busca de minérios. Na cidade havia uma refinaria de ferro, produzindo aço e armas. Ela, a líder Eboshi era obstinada, lutadora e justa para com os seus. No entanto quem atrapalhasse seu trabalho, suas escavações, a exploração de minério, morreria como os javalis morreram. Eboshi não respeitava as divindades, não considerava sua existência. Para ela isso era bobagem, miragem, alucinação.
Na cidade de Tatara-ba, tudo era bem organizado, havia divisão de trabalho, boa produtividade, respeito à hieraquia, mas não havia sacralidade. Na verdade havia uma pobreza filosófica, própria do positivismo. Em várias cenas percebe-se o respeito que ela destinava aos moradores. Ela havia dado melhores condições de vida às mulheres. Todos na cidade a admiravam e a defendiam. Mas também se vê o interesse maior na riqueza e na prosperidade econômica.

COMUNIDADE MORAL ORGANIZADA EM TORNO DOS SISTEMAS DE CRENÇAS RELIGIOSAS

Se considerarmos comunidade moral como sendo o lugar onde a questão filosófica se põe, no caso do filme temos dois eixos de pesquisa. Um pela racionalidade, aquele que pensa, e o outro pela sensibilidade. E ai outra questão surge: “quem são os membros da comunidade moral?”
No entanto segundo diversos pesquisadores a questão da comunidade moral deve ser estendida aos animais irracionais, visto que eles merecem respeito e sentem dor. É bem verdade que cada filósofo leva em consideração seus argumentos para defender suas idéias sobre ética e respeito.
No filme, como se trata de uma fábula a comunidade moral com certeza já foi estendida na medida em que o filme foi pensado.
No vilarejo do príncipe Ashitaka, a comunidade moral é todo o ambiente da aldeia, a floresta e seus habitantes. Temos então no animismo o respeito à vida acima de tudo, aos deuses, a natureza, aos elementos que compõe a natureza e aos seres vivos de modo geral.
Na Cidade de Tatara-ba o pensamento filosófico imperante é o positivismo, onde não há respeito aos fenômenos naturais, onde há um notável avanço tecnológico, um avanço das riquezas, um relativo conforto, e uma exploração dos recursos naturais. Dentro da cidade há respeito as leis criadas por eles, os habitantes humanos, aos racionais.Aqui a comunidade moral é outra,visto que a filosofia vigente também é outra.

AS FASES DE DESENVOLVIMENTO RELIGIOSO SEGUNDO E O FILME

Comte teve uma vida muito conturbada em todos os aspectos, inclusive suas idéias muitas vezes foram rejeitadas pela comunidade científica. Mas apesar de toda a adversidade deixou uma grande contribuição para as ciências e para o mundo, o pensamento positivista.
Segundo Comte, as religiões podem ser divididas em três grandes grupos, levando em consideração a evolução do pensamento humano, a evolução da própria religião. Para ele a humanidade avançava e partir do avanço do pensamento humano, da evolução das concepções intelectuais do homem, formulou Lei dos Três Estados: o “estado fictício” ou “teológico”, o “estado metafísico” ou “abstrato” e o “estado científico ou positivo”.
No primeiro estado é onde encontramos o feitchismo, o animismo muito presentes no filme em questão. É o estágio em que o homem não conhece claramente a natureza, como ela funciona e então projeto sobre a mesma poderes sobrenaturais. Na aldeia do príncipe Ashitaka, nas cenas em torno da anciã com o príncipe e com o deus-Javali, estão presentes o primeiro estágio de desenvolvimento religioso.
Na floresta no momento em que a princesa Mononoke busca a cura para o príncipe, no qual ela entrega o corpo dele aos cuidados da floresta e também aos cuidados do deus Shishi-game, para decidir sobre a vida dele. Vemos uma interação entre dois estágios de desenvolvimento religioso, o animista quando ela crê na natureza e em seus elementos e o segundo estágio, o metafísico, quando ela também crê em um deus que não está entre nós. Um deus superior, onipotente.
No final do filme, quando San e Ashitaka acordam na relva e observam o verde a brotar da floresta, San diz que mesmo que a floresta renasça, ela não será mais a floresta de Shishi-game, pois ele está morto. Ashitaka responde dizendo que não, “pois ele não pode morrer, já que ele é a própria vida e morte.” Aqui temos duas crenças diferentes. A primeira, onde San coloca Shishi-game no estágio animista, como parte da floresta e a crença de Ashitaka que coloca o deus acima do bem e do mal, da vida e da morte, distante do ser humano,em um outro plano, um pensamento metafísico.
Quando temos o aparecimento da ciência, da experimentação, do desenvolvimento dos conceitos científicos, do pensamento humano, surge o terceiro estágio religioso. Este, segundo Comte, seria o fruto da industrialização, da ciência, onde o homem se liberta do estado metafísico, das crenças. Aqui a filosofia e a religião são substituídas pela ciência, pelo pensamento positivista, por um conjunto de regras morais puramente racionais.
No filme, este estágio está explícito na cidade de Tatara-ba, onde o que importa é o avanço das descobertas de minério, o conforto gerado por ele. Percebe-se um sistema moral de comportamento na cidade, entre as pessoas, mas não passa de um regime racional, que substituiu a religião.
Mas algo acontece na cidade de Tatara-ba, a ambição de Jigo em busca da cabeça do deus Shishi-game destrói quase tudo e todos. No entanto Ashitaka e San devolvem a cabeça do deus enfurecido e esse reconsidera a destruição. O verde dos campos e floresta renascem e a vida continua. No entanto Eboshi perdera seu braço na luta contra os samurais que queriam tomar a cidade. Nessa luta contra Jigo e os samurais, as forças – o príncipe Ashitaka, San a princesa Mononoke, as mulheres, os agricultores e mineradores e Eboshi - se uniram em busca de uma salvação para todos. A ambição deixou de ser o mais importante e algo novo surge no mundo daquela líder pragmática e cética. Eboshi fora salva pelos lobos, estes que muito sofreram de ataques de balas produzidas na cidade da líder machucada. Ela então decidiu recomeçar de modo bem diferente. Ela diz: “pessoal, vamos começar tudo novamente. Construiremos uma boa vila dessa vez!”
Ashitaka foi morar na cidade, que agora terá um novo rumo segundo palavras de sua líder. Aqui vimos que a ausência de sacralidade no cotidiano do povo de Tatara-ba levou a destruição, vimos que somente os valores morais da sociedade não foram suficientes para livrar a cidade do grande mal.
Na luta pela sobrevivência os três estágios de desenvolvimento da religiosidade se uniram em busca de uma solução. Não importando o pensamento filosófico sobre as divindades, o desejo de equilibrar tudo, de salvar a todos, trouxe o “perdão” do deus Shishi-game.

O FILME, A CONTEMPORANEIDADE E AS VARIEDADES DA VIDA RELIGIOSA

Fazendo uma analogia entre o filme e a nossa vida atual, onde a valorização dos bens de consumo, dos referenciais humanos externos são mais importantes que os internos, onde a natureza é posta de lado, podemos fazer um link ao filme tomando a cidade de Tatara-ba como base de estudo. Na cidade em questão há ausência de uma filosofia religiosa e uma valorização dos bens materiais, da busca da riqueza, sem levar em consideração o mal causado à natureza.
Assim como foi feito pela cidade Tatara-ba, hoje temos um planeta poluído, recursos naturais escassos, doenças infecto-contagiosas disseminadas pelas cidades e pelo meio rural, como conseqüência de atitudes individualistas e voltadas para o extremo consumo e benefício de minorias.
No filme nas ultimas cenas, onde a vida corre risco de extinção, onde a natureza morre, devido a ambição, ao egoísmo, ao desrespeito ao sagrado, a desvalorização do bem comum, podemos afirmar que algo muito semelhante ocorre nos dias atuais em nosso planeta.  A vida animal e vegetal está em declínio, o aumento de desmatamentos de florestas para a pecuária e agricultura, a erosão de solos causada pelo homem em busca de riquezas minerais, todos esses fatos são exemplos de atitudes ambiciosas da humanidade destruindo um bem comum que é o planeta, o local apropriado para a vida e que nas últimas décadas vem sofrendo mutilação.
Se o homem valorizasse um pouco a dimensão sagrada das coisas, ele não seria a espécie suicida que se tornou.
Como educadora e bióloga acredito ser a humanidade a causadora de muitos fenômenos catastróficos que vem ocorrendo em diversas partes do planeta. A grande variação climática da atmosfera da Terra, das águas oceânicas, tem como causa principal segundo estudos, a poluição atmosférica. Esta com confirmação é oriundo do consumo exagerado, do uso de combustíveis fósseis e de uso indiscriminado de recursos naturais.
Assim defendo a idéia de que deveríamos optar pelo consumo consciente, pelo o que chamamos de consumo verde.
No filme, na cidade de Tatara-ba a ambição, a industrialização, o consumo também foram os responsáveis pela quase destruição do mundo. Essa só não ocorreu por que todos imbuídos da salvação, se reuniram, deixando de lado questões individuais, e lutaram pelo bem comum.

Márcia Helena Araújo Sales

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